Na aurora de sua civilização, o povo africano mais tarde conhecido pelo nome de Yorubá, chamado de nagô no Brasil, nome dado pelo Professor Nina Rodrigues, acreditava que forças sobrenaturais impessoais, espíritos, ou entidades estavam presentes ou corporificados em objetos e forças da natureza.
Tementes dos perigos da natureza que punham em risco constante a vida humana, perigos que eles não podiam controlar, esses antigos africanos ofereciam sacrifícios para aplacar a fúria dessas forças, doando sua própria comida como tributo que selava um pacto de submissão e proteção e que sedimenta as relações de lealdade e filiação entre os homens e os espíritos da natureza.
Muitos desses espíritos da natureza passaram a ser cultuados como divindades, mais tarde designados Orixás, detentoras do poder de governar aspectos do mundo natural, como o trovão, o raio e a fertilidade da terra, enquanto outros foram cultuados como guardiões de montanhas, cursos d'água, árvores e florestas. Cada rio, assim, tinha seu espírito próprio, com o qual se confundia, construindo-se em suas margens os locais de adoração, nada mais que o sítio onde eram deixadas as oferendas.
Um rio pode correr calmamente pelas planícies ou precipita-se em quedas e corredeiras, oferecer calma travessia a vau, mas também mostra-se pleno de traiçoeiras armadilhas, ser uma benfazeja fonte de alimentação piscosa, mas igualmente afogar em suas águas os que nelas se banham. Esses atributos do rio, que o torna ao mesmo tempo provedor e destruidor, passaram a ser também o de sua divindade guardiã. Como cada rio é diferente, seu espírito, sua alma, também tem características específicas. Muitos dos espíritos dos rios são homenageados até hoje, tanto na África, em território Yorubá, como nas Américas, para onde o culto foi trazido pelos negros durante a escravidão e num curto período após a abolição, embora tenham, com o passar do tempo, se tornados independentes de sua base original na natureza. São ele Iemanjá, divindade do rio Ogun, Oiá ou Iansã, deusa do rio Níger, assim como Oxun, Obá, Euá, Logun Edé, Erinlé e Otin, cujos rios conservam ainda hoje o mesmo nome de sua divindade.
No Brasil, assim como em Cuba, Iemanjá ganhou o patronato do mar, que na África pertencia a Olocum, enquanto os demais Orixás de rio deixaram de estar referidos a seus cursos d'água originais, ganhando novos domínios, cabendo a Oxun o governo dos rios em geral e de todas as águas doces.
A economia desses povos desenvolveu-se com base na agricultura, caça, pesca e artesanato, com intensa e importante atividade comercial concentrada nos mercados das cidades, para onde acorria a produção das diferentes aldeias e cidades. Podemos ver nessa sociedade em formação um deslocamento dos Orixás do plano dos fenômenos da natureza para o plano da divisão social do trabalho, assumindo os Orixás a característica de guardiões de atividades essenciais para a vida em sociedade.
O culto às divindades continuou sendo local, podendo a mesma atividade ser guardada por deuses locais distintos. Só muito mais tarde alguns Orixás foram elevados à categoria de Orixás nacionais. Assim, na agricultura encontramos o culto a Ogun e Orixá-Ocô, enquanto as atividades de caça estavam guardadas por Oxóssi, Logun Edé, Erinlé, e muitos outros Orixás caçadores conhecidos genericamente pelo nome de Odé, que significa caçador. No Brasil, onde a geografia africana deixou de ter sentido, alguns Orixás de rio, como Logun e Erinlé, ficaram restritos à caça, embora se faça referência também a seus atributos de pescadores, especialmente no caso de Logun Edé.
No caso de Ogun, há uma relação direta entre a agricultura e o artesanato do ferro, que permitiu a produção das ferramentas agrícolas, o mesmo ferro com que se fazem as armas de guerra, faca, facão, espada, e que transformou Ogun no deus da metalurgia e da guerra, numa emblemática expansão de um culto que se iniciou em referência ao plano da natureza (o ferro) para depois se fixar no domínio das atividades humanas (agricultura, metalurgia, guerra). A importância do minério extraído da natureza define-se por sua aplicação na cultura e leva à constituição de um culto que ao mesmo tempo deseja propiciar as forças sobrenaturais para garantir o acesso ao minério e o sucesso nas atividades que usam artefatos com ele produzidos. Quanto mais o trabalho se especializava, mais o Orixá se liberava do mundo natural e mais próximo se situava do mundo do trabalho, isto é, do mundo da cultura, das atividades sociais, do mundo do homem, enfim.
A antiga religião de caráter animista, ou seja, de crença de que cada objeto do mundo em que vivemos é dotado de um espírito, em algum momento primordial fundiu-se com o culto dos antepassados. Podemos definir o culto dos antepassados como o conjunto de crenças, mitos e ritos que regulam os vínculos de uma comunidade com um número grande de mortos que viveram nessa comunidade e que estão ligados a ela por parentesco, segundo linhagens familiares, acreditando-se que os mortos têm o poder de interferir na vida humana, devendo então ser propiciados, aplacados por meio das práticas sacrificiais para o bem-estar da comunidade. Através do sacrifício, o antepassado participa da vida dos viventes, compartilhando com eles o fruto do sucesso das colheitas, das caçadas, da guerra e assim por diante. Embora todo morto mereça respeito e sacrifício, são os mortos ilustres os que se colocam no centro do culto. São os fundadores das antigas linhagens familiares, os heróis conquistadores, fundadores de cidades, o que inclui os falecidos pertencentes à família real, especialmente o rei.
Alguns antepassados, sobretudo os de famílias e cidades que lograram expandir seu poder e seu domínio além de seus muros, acabaram sendo reverenciados, isto é, deificados, ocupando no universo religioso o mesmo status de um Orixá da natureza, muitas vezes confundindo-se com eles. Assim, Xangô é ao mesmo tempo o Orixá do trovão, que rege as intempéries, e o antepassado mítico reverenciado que um dia teria sido o quarto rei da cidade de Oió. Como rei, é o regulador das atividades ligadas ao governo do mundo profano, do qual é o magistrado máximo, assumindo assim, o patronato da justiça. Muitos reis, míticos ou não, foram alçados à dignidade de Orixá. Por outro lado, muitos Orixás que já mereciam cultos ganharam também a conotação de antepassado, especialmente como reis. Como ocorreu com Ogun, lembrado como rei de Irê e Oxaguiã, rei de Ejibô, entre outros.
Confrarias de sacerdotes especializados também se organizaram em função de divindades relacionadas a atividades mágico-religiosas específicas, como os adivinhadores ou babalawôs, reunidos no culto de Orunmilá ou Ifá, o deus do oráculo, e os curadores herbalistas, ou olossains, dedicados a Ossain, o Orixá que detém o poder curativo das plantas. Tanto Orunmilá como Ossain tiveram cultos nacionais em território Yorubá, uma vez que seus sacerdotes ofereciam seus serviços a todos os que deles precisassem, não estando suas atividades circunscritas aos cultos familiares ou de cidades. Exu, Orixá do mercado e da comunicação entre os deuses e entre estes e os humanos, também ganhou culto sem fronteiras familiares ou citadinas.
Com a expansão política de algumas cidades e a incorporação de outros territórios, deuses locais passaram a ter um culto mais generalizado, o que transformou Xangô num deus cultuado em todo o território controlado por Oió, que teve o maior dos impérios Yorubás. Iemanjá, originalmente uma divindade Ebgá de rio, cultuada em território de Abeocutá, transformou-se em objeto do culto às ancestrais femininas, sendo homenageada no início dos festejos dedicados às grandes mães ancestrais no festival Geledé, cuja celebração envolve várias cidades
Através da instituição do culto aos antepassados, os antigos Yorubás estabeleceram as bases míticas de sua própria origem como povo, deificando seus mais antigos heróis, fundadores de cidades e impérios, aos quais se atribuiu a criação não somente do povo Yorubá como de toda a humanidade. Dá-se assim a gênese do Orixá Odudua, rei e guerreiro, considerado o criador da Terra, e de Obatalá, também chamado Orixanlá e Oxalá, o criador da humanidade, além de muitos outros Deuses que com eles fazem parte do panteão da criação, como Ajalá e Oxaguiã.
O contato entre os povos africanos, tanto em razão de intercâmbio comercial como por causa das guerras e domínio de uns sobre outros, propiciou a incorporação pelos Yorubás de divindades de povos vizinhos, como os voduns dos povos fons, chamados jejes no Brasil, entre os quais se destaca Nanã, antiga divindade da terra, e Oxunarê, divindade do arco-íris. O deus da peste, que recebe os nomes de Omulu, Olu Odo, Obaluaê, Ainon, Sakpatá e Xamponã ou Xapanã, resultou da fusão da devoção a inúmeros deuses cultuados em territórios Yorubá, Fon e Nupe. As transformações sofridas pelo deus da varíola, descritas por Claude Lépine (1998), até sua incorporação ao panteão contemporâneo dos Orixás, mostra a importância das migrações e das guerras de dominação na vida desses povos africanos e seu papel na constituição de cultos e conformação de divindades.
Quanto mais os Orixás foram se afastando da natureza, mais foram ganhando forma antropomórfica. Os mitos falam de Deuses que pensam e agem como os humanos, com os quais partilham sentimentos, propósitos, comportamentos e emoções. Seus patronatos especializaram-se em aspectos da cultura e da vida em sociedade que melhor atendiam às necessidades individuais dos seus devotos, embora possam manter referências ao original mundo natural.
Com a vinda para as Américas, ao processo de antropormofização e mudança ou diversificação do patronato adicionou-se a unificação do panteão, passando Orixás de diferentes localidades a ser cultuados juntos nos mesmos locais de culto, no caso do Brasil, os terreiros de candomblé, ocorrendo mais forte especialização na divisão do trabalho dos deuses guardiões. Assim, Iemanjá, agora rainha do mar, é a protetora da maternidade e do equilíbrio mental; Oxun ganha as águas doces e a prerrogativa de governar a fertilidade humana e o amor; Ogun governa o ferro e a guerra, mas também é aquele que abre todos os caminhos e oportunidades sociais; Xangô, Orixá do trovão, é o dono da justiça. E assim por diante. Como a religião dos Orixás foi refeita no Brasil por africanos ou descendentes que, no século XIX, viviam nas grandes cidades costeiras, ocupando-se em atividades urbanas, fossem eles escravos ou livres, a preocupação com atividades agrícolas era muito secundária, de sorte que os Orixás do campo foram esquecidos ou tiveram seus governos reorganizados. O culto a Orixá-Ocô se perdeu e hoje raramente alguém se lembra de Ogun como Orixá do campo. Também os Orixás da caça perderam com a nova sociedade. Oxóssi ganhou a responsabilidade de zelar pela fartura de alimentos, mas não há mais caçadores para cultuá-lo e muitos Odés foram reagrupados no culto de Oxóssi, como ocorreu com Erinlé e Otin. O grande papel de Oxóssi no Brasil na verdade decorre de sua condição de patrono da nação ketu, instituída com a fundação dos candomblés baiana Casa Branca do Engenho Velho, Gantois e Axé Opô Afonjá, e que é uma referência à cidade africana de Ketu, hoje situada no Benin, da qual Oxóssi era o Orixá da casa real e onde atualmente está praticamente esquecido. Mudanças recentes nas condições de vida, inclusive em termos de saúde pública, fizeram de Omulu o médico dos pobres brasileiros, mas hoje ele está longe de ser cultuado por causa da varíola, seu domínio original, praticamente eliminada em nossa sociedade.
No Brasil, com a concentração do culto aos Orixás nos terreiros, sob a autoridade suprema do pai ou mãe-de-santo, antigas confrarias africanas especializadas desapareceram, uma vez que o pai-de-santo passou a controlar toda e qualquer atividade religiosa desenvolvida nos limites de sua comunidade de culto. Os Orixás dessas confrarias foram esquecidos ou se transformaram. Assim, com a extinção dos babalawôs, os sacerdotes do oráculo, o culto a Orunmilá praticamente desapareceu, subsistindo marginalmente em alguns poucos terreiros pernambucanos. O oráculo, agora prerrogativa do chefe de cada terreiro passou a ser guardado por Exu e Oxun, que na África já eram estreitamente ligados às atividades de adivinhação. A confraria dos curadores herbalistas, os olossains, também não se manteve nos moldes africanos, ficando os olossains restritos às atribuições de colher folhas e cantar para sua sacralização, tendo perdido para o pai-de-santo as prerrogativas do curador. Em decorrência, o culto de Ossain ganhou novas feições, ficando mais assemelhado ao culto dos outros Orixás celebrados nos terreiros, podendo inclusive ser recebido em transe como os demais, o que não acontecia na África. Espíritos das velhas árvores foram antropormofizados e iroco, que na África é simplesmente o nome de uma grande árvore, aqui se transformou no Orixá Iroco, que recebe oferendas na gameleira branca e desce em transe, ganhando, cada vez mais, independência em relação à árvore, situando-se, por conseguinte, mais longe da natureza.
O desenvolvimento científico e tecnológico, ao promover a expansão do controle da natureza pelo homem, controle que vai desde a previsão das intempéries e catástrofes naturais até a obtenção da fecundação in vitro, passando pela cura da maioria das moléstias, garantindo a redução das taxas de mortalidade infantil, afastando as endemias e epidemias, aumentando a esperança de vida, tudo isso foi desviando cada vez mais o olhar do homem religioso da natureza, uma vez que esta já o preocupa menos, representando menos riscos, menos perigo. Diferentes povos tiveram diferentes preocupações com a natureza. Os Yorubás, como povos da floresta, pouco se interessaram pelos astros, que ocuparam posição importante nos sistemas religiosos de povos que viviam em lugares abertos e altos. Para os Yorubás, as florestas e os rios eram mais importantes que a lua ou as estrelas. Sua semana de quatro dias não tem relação com as fases da lua, que em muitos povos originou a semana de sete dias. Habitando o interior, longe do mar, lhes faltou certamente a observação da maré associada às fases da lua para estabelecer um calendário lunar. A morada dos deuses e dos espíritos dos Yorubás, emblematicamente, não fica no céu, mas sob a superfície da terra.
No Brasil, as referências à natureza foram, contudo, simbolicamente mantidas nos altares sacrificiais, que são os assentamentos dos Orixás e em muitos outros elementos rituais. Desse modo, como a África, seixos provenientes de algum curso d'água não podem faltar no assentamento dos Orixás de rio, confundindo-se as pedras com os próprios Orixás. Pedaços de meteoritos, as pedras de raio do assento de Xangô, lembram a identificação deste Orixá com o raio e o trovão. Objetos de ferro são usados para o assentamento de Ogun. E assim por diante. O candomblé também conserva a idéia de que as plantas são fonte de Axé, a força vital sem a qual não existe vida ou movimento e sem a qual o culto não pode ser realizado. A máxima Yorubá "kosi ewê kosi Orixá", que pode ser traduzida por "não se pode cultuar Orixás sem usar as folhas", define bem o papel das plantas nos ritos. As plantas são usadas para lavar e sacralizar os objetos rituais, para purificar a cabeça e o corpo dos sacerdotes nas etapas iniciáticas, para curar as doenças e afastar males de todas as origens. Mas a folha ritual não é simplesmente a que está na natureza, mas aquela que sofre o poder transformador operado pela intervenção de Ossain, cujas rezas e encantamentos proferidos pelo devoto propiciam a liberação do Axé nelas contido. Há algumas décadas a floresta fazia parte do cenário do terreiro de candomblé e as folhas estavam todas disponíveis para colheita e sacralização. Com a urbanização, o mato rareou nas cidades, obrigando os devotos a manter pequenos jardins e hortas para o cultivo das ervas sagradas ou então se deslocar para sítios afastados, onde as plantas podem crescer livremente. Com o passar do tempo, novas especializações foram surgindo no âmbito da religião e hoje as plantas rituais podem ser adquiridas em feiras comuns de abastecimento e nos estabelecimentos que comercializam material de culto. Exemplo maior, no Mercadão de Madureira, no subúrbio do Rio de Janeiro, pródigo na oferta de objetos rituais, vestimentas e ingredientes para o culto dos Orixás, mais de vinte estabelecimentos vendem, exclusivamente, toda e qualquer folha necessária aos ritos de Ossain. Bem longe da natureza.
Embora a concepção de Orixá esteja hoje bem distante da natureza, muitas celebrações se fazem em locais que lembram as antigas ligações, como as festas de Iemanjá junto ao mar, como os depachos feitos na água corrente, na lagoa, no mato, na pedreira, na estrada etc., de acordo com o Orixá a que se destinam. Com a recente preocupação com o meio ambiente, o candomblé tem sido muito lembrado como religião da natureza, apontando-se muitos terreiros como modelares na preservação ambiental. Alguns líderes, de fato, tem procurado se engajar em movimentos preservacionistas, alertando os seguidores dos Orixás da necessidade de se defender da poluição ambiental locais usados pela religião, como cachoeiras e fontes, lagos e bosques. Alguns defendem a necessidade do próprio candomblé deixar de usar nas oferendas feitas fora do terreiro e nos despachos material não biodegradável.
Nesse clima de "retorno ao mundo natural", de preocupação com a ecologia, um Orixá quase inteiramente esquecido no Brasil vem sendo aos poucos recuparado. Trata-se de Onilé, a Dona da Terra, o Orixá que representa nosso planeta como um todo, o mundo em que vivemos. O mito de Onilé pode ser encontrado em vários poemas do oráculo de Ifá, estando vivo ainda hoje, no Brasil, na memória de seguidores do candomblé iniciados há muitas décadas.